domingo, 11 de agosto de 2019

Índio fazendo arte na grande cidade

 

" A herança marajoara persiste apesar de seu desaparecimento há milhares de anos. Sou de um tronco linguístico muito antigo, os Karuanas, também desaparecidos, somos portanto de uma geração geneticamente mestiça ou misturada com tupinambás, Nhengaibas, Aruãs, Karib, Aruak
Eu me identifico Karuana... não sou aldeado mas, mantenho uma boa relação com meus parentes indígenas de Belém do Pará." Essas são afirmações de FE Kokocht.  Vamos saber um pouco sobre sua história.

É ali na poesia concreta das esquinas da Avenida São João com Ipiranga, no centro de São Paulo, cruzamento famoso pela música Sampa de Caetano Veloso, que encontramos  um remanescente da tribo marajoara de Belém do Pará. Apaixonado por palavras e imagens cinematográficas, ele vive fazendo arte no Palacete dos Artistas.Seu nome é Francisco Kokochit e é diretor, ator, cenógrafo, figurinista, aderecista, dramaturgo e oficineiro. Um homem que transformou sua história em arte e resistência!


Então aquele jovem Francisco que sonhava encontrar aqui um castelo, encontrou o seu palácio, ou melhor um histórico palacete para viver.

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Cercado de figurinos,livros, objetos de cenário, fotos na parede e músicas clássicas tocadas em alto volume no seu  rádio, ele costura, beberica um vinho e recebe os amigos. Ao seu lado estão seus animais de estimação como a cadela Pérola e o gato Zeus.



Era o ano de 1969, quando Francisco E Kokochit veio de Belém do Pará , chegando na capital Paulistana de carona em um caminhão.

Ele conta que quando chegou aqui passou frio e fome.

Veio com o objetivo de reclamar de um emprego como contador em uma grande empresa multinacional, mas nunca mais voltou. Descobriu o mundo artístico e decidiu conquistar seu espaço.

Alguns meses depois arranjou emprego com a atriz e diretora Vic Militello, que antes de morrer, foi sua vizinha no Palacete dos Artistas. Foi ela quem alugou um teatro para sua primeira direção.

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A primeira crítica construtiva veio da grande Tatiana Belink que o incentivou a seguir sua nova profissão .


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Kokocht conta que chegou a estudar na EAD, Escola de Arte Dramática em São Paulo, mas nunca concluiu seu curso, pois tinha que trabalhar para sobreviver.

A questão da reciclagem sempre fora seu carro chefe, pois já a utilizava desde aquela época em  adereços e objetos cênicos.O amor pela costura herdou da mãe. Foi com ela que aprendeu todos os segredos do mundo das linhas e agulhas, e a apreciar tecidos e bordados, com roupas e figurinos na medida certa.

Entre histórias e lendas,em sua dramaturgia ele resolveu apostar nos povos esquecidos como  negros, indígenas, ciganos, etc


Aprendeu com grandes nomes no teatro como Iacov Ilel, Celso Nunes, Marilena Ansaldi, Ety Fraser, Ruth Escobar e até a atriz Rutinéia de Moraes, sua amiga e madrinha .

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Sua estréia como ator de teatro veio em 1972 através do  espetáculo
A viagem, com direção de Celso Nunes.
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Participou do musical  HAIR, grande sucesso no teatro daquela época, dirigido por  Altair Lima.



No mesmo ano participou do I Festival Internacional de Teatro de São Paulo, que segundo ele, mudou sua vida. O responsável por esta mudança foi o ator e diretor norte americano Bob Wilson, conhecido por seu apuro visual.

"Bob wilson foi um marco em minha carreira!"


O ator e diretor americano Bob Wilson na peça "Conferência sobre o Nada"

.
Trabalhou também com seu conterrâneo,o roteirista, ator, produtor, compositor e diretor de cinema Denoy de Oliveira, por quem tem grande admiração.

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Recebeu vários prêmios no teatro entre eles Prêmio Paulo Laura com Viagem de Pedro, o afortunado, de Strinberg. Atuou com a grande amiga e comadre Gilda Vandenbrande no espetáculo "Vamos brincar de teatrinho",conquistando mais um prêmio para seu currículo.




 Em 1985 resolveram criar o Grupo de Teatro Encenação, com o apoio do superintendente Audálio Dantas e de Dorica Krajan da Imprensa Oficial do Estado - IMESP. Aqui ele fala da importância da parceria com a grande atriz e diretora Gilda Vandenbrande, amiga desde 1974.



Segundo Regina Sartori, uma das primeiras integrantes do grupo,no início o objetivo principal era aproximar os funcionários e crianças da creche mantida pela IMESP na rua da Mooca ao teatro. 



Por isso escolheram  A Bruxinha Angela, baseado no texto A Bruxinha que era boa, de Maria Clara Machado.

Abaixo tem a foto do primeiro elenco fazendo uma animação de festa em abrigos
Regina Sartori, Kokochit, Teresa Branco, Gutierre(falecido), Marivaldo, Carlinhos, Rosangela, fazendo uma animação de festa em abrigos



" Eram crianças pequenas que grudavam na gente para gente não ir embora, bebês ainda, todo mundo ficou sensibilizado, eu chorei!"

Foi com este viés social que nasceu o Grupo Encenação. A  peça percorreu vários teatros municipais do interior Paulista

Regina conta que conheceu Kokocht na primeira Mostra de Arte  do Cambuci."Ele  morava em uma casa grande perto do metrô Vila Mariana, com o Grupo musical Tarancon."

No decorrer do tempo e com mudanças na direção da IMESP, os integrantes foram despejados. Por sorte encontraram um espaço na Casa de Cultura Mazzaropi e puderam dar continuidade aos objetivos. Depois decidiram pelas montagens que questionavam momentos contundentes da realidade brasileira.

Como é o caso da  peça Nem tudo está azul no país Azul, texto premiado de Gabriela Rabelo com músicas de Amilson Godoy (Zimbo Trio) e direção de F.E.Kokocht e Noêmia Scaravelli, outra grande parceira.

A estréia foi em 1987, a peça ficou em cartaz no Centro Cultural
Vergueiro. Depois de ganhar o prêmio de melhor espetáculo da
cidade de São Paulo percorreu vários teatros do interior.


Em seguida os integrantes do Grupo fizeram parte da formação do
Laboratório de Artes Cênicas, voltado à preparação de
técnicos para atuarem no mercado cênico. Além disso criaram  montagens experimentais como Por detrás nos camarins e Violências com textos de F.E.Kokocht e colaboração de Silvia Calçada.


Dois anos depois o Laboratório e o Grupo ficaram sem espaço novamente e as mudanças foram inevitáveis. Os integrantes se mantiveram unidos até encontrarem novo lugar na rua Wandenkolk, 308, no bairro do Brás, onde permanece até hoje.





Surge então a montagem do musical afro brasileiro Bem me quer, com texto e
direção de F.E.Kokocht e parcerias de Gilda Vandenbrande criando
 músicas e letras e Gilberto Gasparetto, responsável pela direção musical.


O espetáculo foi um sucesso!Além de ter sido Premiado em várias modalidades pelas
APETESP e MAMBEMBE,onde houve revelação do talentoso Eduardo Silva.


Através da Secretaria Municipal de Cultura, na Casa Mário de Andrade, o Grupo
participou do Ciclo de leituras dramáticas, cujo texto era  Lua de cetim de Alcides Nogueira

De 1989 a 1991 apresentaram novos espetáculos como A princesa dos ciganos,montagem retomada no ano de 1998 da qual tive a honra de interpretar a cigana Natascha.



 As estrelas da janela  de F.E.Kokochit, foi outro grande espetáculo do grupo.

Ficou  em temporada no ano 1990 no Teatro Alfredo Mesquita.


O espetáculo infantil trazia o ator Fábio Assunção.
 Assim como Fábio, vários artistas começaram a carreira com Kokocht  como Jairo Matos, Atílio Bari, Hugo Possolo, e outros.



Em seguida o grupo decidiu montar textos autorais de cultura indígena com
pesquisas e novas parcerias profissionais.

Em 1992 estreou Kurumim (Luamim), inspirado na invasão do
continente americano pelos europeus, na visão indígena e no poema Luamim de
Paulo Martins, a direção foi de F.E.Kokocht/ Noêmia Scaravelli

Pela Editora do Brasil escreveu em parceria com Camila
 músicas e letras especialmente compostas por Gilda
Vandenbrande cumprindo temporada no Teatro Sérgio Cardoso
e teatros distritais.

Em seguida vieram Aruanãs, a sabedoria dos mortais e o belo texto A lenda do Guaraná, onde tive o prazer de contracenar com o Kokochit interpretando Tuíra, a filha do Pajé. A peça se baseia na Lenda indígena e trata do amor impossível entre a índia, prometida ao deus Jurupari, e o índio Coluwene, a linguagem é extremamente poética e filosófica.

As apresentações aconteceram em teatros da Prefeitura, escolas municipais, centros culturais, em diversas unidades do Sesc e Memorial da América Latina.




Mais tarde o grupo passa a ensaiar no Centro Cultural Vergueiro a peça Xamãs, miragem no tempo, com direção de Wilma de Souza. Com uma mistura de aventura na Amazônia, busca de tesouros arqueológicos, xamanismo, tecnologia e muitos questionamentos existenciais a peça estreou em São Paulo no ano de 2005.


Depois veio O Portal do Fim do Mundo, onde os animais se revoltam com a invasão de estrangeiros em terras da Amazônia.


E o recente  Tainakan, o contador de histórias indígenas




Falar de Kokocht é não deixar de lembrar das obras de arte  na parede do seu ateliê, representando o significado maior em sua vida: A cultura dos nossos ancestrais!

É observar em sua tradicional casa de artista a presença das artes plásticas, dos colares artesanais, cocares, costuras e roupas de época, além de desenhos, adereços e retratos de vários momentos de sua vida artística.














É perceber o quanto apoia sua família, ensinando sua arte aos seus descendentes. Como podemos observar nesta foto de sua neta Giovana Vitória que o auxilia nas confecções e adereços.

 É ser homenageado em uma exposição na Casa Mario de Andrade, através do curador e idealizador da mostra, o saudoso e querido Carlos Alberto da Conceição Teixeira, que sempre acreditou em seu trabalho. 


O cinema também é sua outra grande paixão, e ele faz questão de afirmar que o que mais o atrai é a poesia das imagens  ... como a famosa cena do filme Pixote, em que contracenou com Marília Pera


E que importância tem as amizades?

Ao longo de sua vida e carreira, Kokocht conquistou vários amigos, seguidores e fãs. Pessoas que moram longe, e até fora do Brasil como Anne Elizabeth Bozon Verduraz, que vive em Grenoble, na França.
 Ela  já é considerada por todos como integrante do grupo. Isso se justifica  pelo apoio e atenção manifestados em relação aos trabalhos. Há pouco tempo falou de seu desejo em levar o grupo para a terra onde vive. Teve a delicadeza de fazer a tradução para o francês de um dos textos dirigidos por Kokocht.

Francisco encanta a todos pela sua generosidade e talento.
Ele também faz questão de dar oportunidade aos novos talentos. Foi assim com o amigo Gilberto Gasparetto, um dos primeiros integrantes do grupo Encenação, que hoje é adido cultural em  Cuba 



Com todo o respeito e cuidado, apoia novos projetos como é o caso  do espetáculo Olhos Moles, baseado em Pagu, que se prontificou imediatamente a organizar o texto, assinar a direção e a criação de figurino.


Um dos lugares que frequenta é a Cooperativa Paulista de teatro, onde é
recebido com todo o carinho pela Eliane.











"É doce viver no bar". parodiando o famoso verso de Dorival Caymi sobre o mar, talvez este poderia ser seu jeito de viver a vida. Não dá para falar de Kokocht sem citar os bares que frequenta em seus encontros com amigos e artistas.
  
 Quantas experiências e filosofias!
Quantas parcerias e projetos começaram nas mesas de um bar... ele sente prazer em agregar as pessoas!

Eu mesma o conheci no Biroska, bar dos artistas na Santa Cecília, onde havia leituras dramáticas na década de 1990. 
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E é claro que não pode faltar a cerveja, com a qual ele brinca dizendo ser seu "remedinho".

Talvez seja este seu segredo de juventude e desejo de viver!  Como ele mesmo fala " Estou "índio" referindo-se à sua paciência para chegar aos lugares e fazer as coisas. E pensamos que ele quer dizer  que com  calma tudo dará certo!

  Aqui com o talentoso ator Thiery Maciel, que começou no grupo Encenação ainda menino. Com foco e força de vontade hoje ele já escreveu livros sobre cultura indígena, faz diversos trabalhos e cursa a Faculdade de Marketing.

E comigo para contar sua história!


 O famoso Frango com Tudo, queridinho entre os atores, tem um ambiente descontraído, comida deliciosa e ainda oferece desconto aos profissionais do teatro, tornando-se assim o preferido do Kokocht  e sua trupe.
 A proprietária Lilian Gonçalves, conhecida como a rainha da noite, sempre apoiou os artistas.

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E talvez seja este o grande momento para nosso defensor da cultura popular: a hora de juntar todos para a grande festa! E assim se faz...como uma espécie de ritual na aldeia da grande cidade!


Em outro canto da capital paulista, perto da Praça da República, Kokocht me recebe para mais uma conversa. Enquanto almoça, brinda com seu outro "drink" favorito: o conhaque! Este que ele jura ser muito bom para aquecer as cordas vocais antes de entrar no palco.


Durante todos estes 20 anos  em que conheço o Kokocht  pude presenciar sua ajuda a vários atores e profissionais da arte, inclusive oferecendo moradia a eles em sua própria casa.  Muitos atores já passaram pelo grupo, saíram e depois de muitos anos voltaram, e ele os recebe com o mesmo sorriso.

Kokocht fala ainda  da alegria e do orgulho de estar vivendo no Palacete dos artistas, pois todos ali são da classe artística e estão ativos e ligados ao trabalho depois dos 60 anos.

Ele revela que pretende fazer uma sucursal na Amazônia, cujo objetivo é resgatar toda a cultura das ervas e da saúde alimentar milenar. Para isso tem como inspiração o escritor Mario de Andrade.







Seu projeto está em andamento. Ele acaba de fazer a " grande fuga". Foi para as regiões do norte e nordeste em busca de material e pesquisa para a realização de seu sonho

"E lá fui eu pelo mundo na grande fuga pra ser feliz...gratidão amigos queridos."  

Hoje faz palestras para contar sua história e incentivar o povo indígena e treina novos atores para seus espetáculos relacionados à cultura dos povos nativos.


Quem sabe seja mesmo este o caminho, como no texto da Lenda do Guaraná - " A semente da esperança vai livrar e curar nossa gente..."



Boa sorte!

Todos estes anos foram de muito aprendizado.
Obrigada Kokocht por toda a sua confiança!

Annete Moreira para o Cult Tur





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